Papo Delas SobreIsso #14 – Notre Dame
Cafeína 3 de maio de 2019

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Olá Amigos e Inimigos do Papo Delas! Hoje, graças aos nossos padrins de abril de 2019, temos oSobreIsso #14 – Notre Dame com texto por nosso ouvinte formado em História pela Universidade Estadual do Ceará Levi Oliveiras na voz da Cafeína. Abaixo o texto descrito do episódio:

É difícil pensar em Notre-Dame sem lembrar da animação da Disney. Sem pensar no gentil corcunda Quasimodo, e subsequentemente, no seu amor para com a cigana Esmeralda.
O personagem que foi criado pelo escritor Victor Hugo no século XIX e trabalhava como sineiro da Catedral de Notre-Dame, tornou-se um ícone pop principalmente por causa da animação, apesar de filmes já terem sido produzidos sobre ele nas décadas de 50 e 80.
A Catedral, situada na Île de la Cité, em Paris, e que começou a ser construída em 1163, é possivelmente o grande exemplo do estilo gótico na Europa. Havendo uma preocupação com a luz natural e com a acústica no interior das construções, além de uma escolha pela ampliação das dimensões laterais, produzindo assim uma grandiosidade imponente que é tanto simbólica quanto literal. Infelizmente, a partir de 15 de abril de 2019,
Notre-Dame será lembrada também pelo fatídico incêndio que a acometeu. O fogo consumindo-a diante dos olhares atônitos de locais e turistas. Não há nenhum motivo realmente relevante que nos impeça de entristecer com tal evento. Tal como o igualmente fatídico episódio com o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. No que diz respeito aos monumentos históricos, aos patrimônios materiais e imateriais, não há fronteira, nem nacionalidade, nem religiosidade (ou falta de) que signifique ou justifique apatia em relação a tais eventos (muito menos comemoração).
Toda vez que um grande monumento tomba. Um pedaço da própria memória do mundo vai junto. A primeira vez em que eu realmente senti tal angústia, foi quando soube das construções milenares destruídas pelo autoproclamado Estado Islâmico na Síria, em 2015. Depois, claro, no episódio do Museu Nacional. O historiador francês Jacques Le Goff nos diz que “A palavra latina monumentum remete para a raiz indo europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). Já o verbo monere significa ‘fazer recordar’. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os actos escritos. (…).
Mas desde a antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de escultura: arco do triunfo, coluna trofel, pórtico, etc.; 2): um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte. É claro que, enquanto monumento, a Catedral de Notre-Dame, se pensarmos em camadas de representatividade, tem mais significância para o povo francês, em particular, e para o mundo cristão-católico, no geral. E é de amplo conhecimento que obras antigas estão sujeitas as intempéries do tempo ou ao descuidado dos homens.
Mas, para além de testemunhas monumentalizadas das práticas e dos anseios de outros tempos, obras como a Catedral representam mesmo uma noção de tempo que antes era absolutamente normal, e que hoje custa muito para nós, citadinos do mundo, a sua simples compreensão. Numa época em que existe tecnologia possível para construir casas em menos de uma semana, considerar obras que demandavam gerações para serem concluídas, é algo quase fantasmagórico. Imaginar o senso de “impersonalidade” e coletividade por trás de construtores que estavam cientes de que não presenciariam o desfecho daquilo que ajudaram construir. É de fato algo tão estranho e deslocado, quanto as quimeras e as gárgulas que circundam os pontos altos da Catedral.
A escolha de Victor Hugo pelo personagem corcunda (um símbolo do grotesco) coaduna bem com o ambiente em que o mesmo foi inserido. Numa correlação errática mas verossímil entre a grandiosidade da Catedral e a pequenez do sineiro. Entre a beleza imponente das abóbodas ogivais e a pretensa feiura do anão curvado. Das angulações majestosas que apontam para os céus e a deformidade de um ser que quase rasteja. No campo simbólico, a Catedral de Notre-Damme foi o palco universal para a deflagração da dialética dos próprios seres humanos. Seja pelas muitas reconstruções que ela enfrentou. Seja pelas quimeras e gárgulas acrescentadas pelos modernos. Seja pelo seu morador mais ilustre, o corcunda Quasimodo. Os pecadores e suas orações por piedade. Os revolucionários objetivistas que a transformaram numa fábrica de pólvora durante a revolução.
Um monumento é muito mais do que um punhado bem arranjado de pedras, paus, vidros e ferro. É um conjunto de memórias e mentalidades que percorre o tempo cravados num espaço como bandeiras, de uma maneira que nós, meros humanos, somos incapazes de o fazer. Por isso é tão doloroso quando o fogo consome tudo aquilo que é inestimável. Pois o legado dos antepassados queima junto com a materialidade. E nós somos lembrados de que mesmo nossas obras mais grandiosas são efêmeras em relação ao deus-tempo. Nós somos mesmo todos Quasimodo, e a despeito de quaisquer explicações racionais e lógicas, amamos conjuntamente Esmeralda. A pedra preciosa e errática. Para o corcunda, a bela cigana. Para nós, a memória, o legado, e a próprio vida humana diante da grandiosidade imponente e impassível do tempo.

 

Edição e voz: Cafeína

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